Juíza Denise Frossard critica enredo patrocinado por ditador de país africano: 'dinheiro sujo'
Para especialistas, os R$ 10 milhões pagos pela Guiné Equatorial à Beija-Flor mancham imagem da escola
RIO — Os R$ 10 milhões pagos pelo governo da Guiné Equatorial à escola de samba Beija-Flor não chamam atenção somente pelo tamanho da quantia, a maior já oferecida para um enredo no carnaval carioca. Juristas e especialistas em direitos humanos questionam o apoio do ditador Teodoro Obiang, há 35 anos no comando do país, a uma das festas mais democráticas do planeta. O ditador é acusado pela organização Human Rights Watch por violações dos direitos humanos e irregularidades no processo eleitoral. Já seu filho, o vice-presidente Teodoro Obiang Mangue, é considerado foragido pela Justiça francesa, e foi condenado pelos crimes de lavagem de dinheiro e desvio de recursos públicos.
ALERTA PARA ORIGEM DO DINHEIRO É ANTIGO
Para a juíza Denise Frossard, responsável pela condenação da cúpula do jogo do bicho em 1993, o fato de a Beija-Flor ter recebido verbas de um governo ditatorial não é surpresa. Ela afirma que na sentença escrita há 22 anos já alertava para as relações entre os dirigentes da Liga das Escolas de Samba (Liesa) e atividades ilícitas.
— É um dinheiro que traz a interrogação de ter vindo com sangue. A simples dúvida já seria mais do que suficiente para recusar. Mas não é da tradição das escolas, até pela origem da direção delas, os condenados bicheiros. Você acaba por não poder exigir muito de pessoas como essas, que não vão ter a ética de fiscalizar a origem das verbas — diz. — Mas não faz diferença se vem de ditador ou se vem deles. Não existe dinheiro mais ou menos sujo.
Relatório da Human Rights Watch publicado em 2014 afirma que o país tem o maior PIB per capita da África, de US$ 32,026 mil, mas ocupa o 136º lugar, em um total de 187 países, no Índice de Desenvolvimento Humano da ONU. Apenas 44% da população têm acesso à água potável, e dados de 2011 mostram que os gastos do governo com educação e saúde, juntos, não passaram de 3% do PIB. O relatório cita ainda casos de tortura, detenções arbitrárias e cerceamento à liberdade de imprensa.
— Há uma contradição enorme em fazer uma homenagem ao povo pobre da Guiné Equatorial e, ao mesmo tempo, aceitar R$ 10 milhões que poderiam ter melhor aplicação naquele país — diz o professor de Direitos Humanos da FGV Direito Rio, Michael Mohallem. — O episódio mancha a organização do carnaval, e em particular da Beija-Flor, ao não criar uma regra ética básica estabelecendo limites para que as escolas captem recursos.
Apesar da polêmica, especialistas acreditam que o patrocínio não chegaria a tirar pontos da escola. Marcelo Guedes, coordenador dos cursos de Administração e Relações Internacionais da ESPM-Rio e pesquisador do tema, também afirma que o apoio pode manchar a imagem da escola. Mas lembra que outros enredos patrocinados já foram alvo de crítica por motivos políticos, como o campeonato da Vila Isabel em 2006 com “Soy loco por ti America”, bancado pelo governo venezuelano:
— Existe um fator de risco quando as escolas começam a escolher esses temas e acabam sendo rotuladas de forma negativa. Mas o carnavalesco tem total liberdade para conduzir o enredo. A Beija-Flor não está infringindo nenhum quesito. O que ela quer é ganhar o desfile.
Em nota, a Beija-Flor afirmou, nesta quarta-feira, que recebeu apoio cultural e artístico da Guiné Equatorial, mas que, no enredo, não fará menções ao formato de governo do país. O texto não confirma nem desmente o patrocínio à escola. Mas, por meio de sua assessoria de imprensa, diz não ter recebido aporte financeiro.
APARATO HISTÓRICO E CULTURAL
Na nota, a escola afirma que buscará divulgar e “enaltecer a arte e a força do povo da Guiné Equatorial, bem como a transformação dos benefícios das suas riquezas naturais em melhorias para a população”. A escola afirmou ainda que o país ofereceu aparato histórico e cultural para que sua comissão de carnaval pudesse pesquisar.
Bianca Behrends, membro da comissão da escola, afirma que integrantes da Beija-Flor fizeram duas viagens ao país, em contatos intermediados pela Embaixada da Guiné Equatorial no Brasil.
PUBLICIDADE
— Trouxemos esculturas, tecidos e um acervo de duas mil fotografias. Mas a Guiné Equatorial tem menos de cinco décadas de independência. Não faria sentido um desfile inteiro sobre o país. Vamos abordar a região da Costa da Guiné, da floresta equatorial, dos tempos primitivos até hoje. Apenas no sexto carro temos a Guiné Equatorial. E, no último, o trataremos do laço cultural entre o Brasil e o país africano. Mas a questão histórica e política diz respeito a cada nação. Respeitamos a soberania de todos os povos. Vamos mostrar uma África colorida e para cima — diz.
A escola negou ainda em nota que a letra do samba tenha sido alterada por determinação de dirigentes do país:
“O samba foi alterado pela própria comissão de carnaval da agremiação, visando adequá-lo ainda mais à proposta do enredo, somente por isso”.